divagações a partir de Annie Ernaux
Prêmio Nobel de Literatura em 2022, Annie Ernaux escreve sobre si, mas nunca sobre si mesma. Às autoras que escrevem sobre o que vivem, costuma-se dizer que não fazem literatura. Nunca ouvi o mesmo sobre o trabalho de Karl Ove Knausgård. Mas, enfim, essa é uma outra conversa: é sobre o que Ernaux faz, nesse exercício de falar de si mesma, e nunca só de si mesma.
Getting Lost é seu diário, escrito entre os anos de 1988 e 1990, no qual ela se ancora na escrita para elaborar o romance que viveu em segredo com um diplomata russo nesse período. São 240 páginas de muitas entradas, muito angustiantes, sobre os encontros, mas sobretudo sobre o tempo de espera por este homem.
Quem ama espera, diz o Barthes, em Fragmentos de um Discurso Amoroso.
Enquanto espera, Ernaux fala da dificuldade de cuidar da própria vida. A essa altura, tem 45 anos, é divorciada, seus filhos são adultos, e ela publicou cinco livros, dentre os quais O Lugar e Uma Mulher, que saíram no Brasil em 2021 e 2024, pela editora Fósforo, com tradução da Marília Garcia.
Nos diários, Ernaux deixou o mundo de fora, e o que entrou foram detalhes dos dias e noites: os eventos a que tem que comparecer, os textos que não consegue escrever, o telefone tocando, o barulho do carro dele chegando, a vontade de aprender a sua língua, as meias que ele nunca tirava, o dia seguinte, e os próximos, a angústia de não saber o que significava para ele. Raiva da sua fraqueza, da paralisia que a acomete. Medo da morte, desejo de morte, de vida.
Um pedaço dessa história ela reconstrói em uma narrativa curta e tocante, Paixão Simples, que publica em 1991. No Brasil esse livro chegou em 2023, também pela Fósforo, também tradução da Marília Garcia. Mas em 2000, ela relê os diários, em que não tocara desde 1995. E ali percebe que essa coisa crua e sombria de que tentava dar conta deveria ser trazida para a luz. “Este é um caderno cheio de tristeza, e com alguns lampejos de prazer em estado bruto”. Não tira nada, não altera nenhuma passagem. Em 2001, quando ela publica os diários, afirma:
“O que esse homem era para mim: a encarnação do absoluto, algo que me colocava num estado de terror sem nome”. E também: “Por meses, sem saber, ele encarnou essa coisa, fascinante e assustadora, que tem a ver com o desejo, a morte e a escrita”.
S., como ela o chama, a faz pensar em algo que se repete em sua vida. A imensa fatiga, o mesmo torpor vivido nos anos de 1958 e 1963, quando amou outros homens. A paixão a consome ao ponto das lágrimas. Completamente possuída por ele. Enquanto arde, escrever qualquer coisa para além desses diários é impossível: ela vive num mundo de carne, dor e desejo por um homem.
Mas o tempo passa, e a escrita a salva.
Trauma, em psicanálise, nem sempre diz respeito a algo grande como um aborto, a morte de alguém que amamos, o absurdo de uma guerra. Trauma é o que excede a nossa capacidade de elaboração. “Sofremos do não apropriado da nossa história, e nos curamos integrando-o”, sustenta René Roussillon. A escrita, para Ernaux e tantas outras autoras (e autores), é uma estratégia que (e aqui me apoio no trabalho de Marion Minerbo, que por sua vez pensa com Freud, Winnicott, Green, Roussillon) transforma experiências emocionais brutas em matéria psiquicamente metabolizada, e então possível de ser metabolizada.
Escrever é colocar em palavra, e colocar em palavra é caminho para a elaboração.
Sorte têm aquelas que escrevem!
Mas será que Ernaux, porque escreve, vive de um jeito diferente de nós?, ela se pergunta. E na sequência responde: “sim, acho que sim, mesmo nas profundezas da dor. Mas nem sempre: este é o drama”.
Este é o drama.
Ernaux segue vivendo, e escrevendo, um total de 24 livros publicados, a maior parte deles ainda por chegar aqui.
Viver é uma coisa, contar-se é outra. Contar-se, e aqui volto à Karen Blixen, que quem me contou Adriana Cavarero em Olha-me e Narra-me. Contar-se é poder olhar para o desenho que a vida deixa no chão, conforme me distancio das pegadas, e a este desenho atribuir um sentido. Olha, uma cegonha!
O sentido dessa história, e porque ela nos conta, está em Paixão Simples:
”Graças a ele, eu me aproximei do limite que me separa do outro, a ponto de imaginar que iria chegar do outro lado. Passei a medir o tempo de outra forma, com todo o meu corpo. Descobri do que podemos ser capazes, ou seja, de tudo: desejos sublimes ou mortais, falta de dignidade, crendices e condutas que eu julgava insensatas nos outros, uma vez que eu própria não as havia experimentado. Sem saber, ele estreitou minha conexão com o mundo”.
Que sorte têm aqueles que amam!
